Saturday, April 02, 2005
PALAVRAS DE MIA COUTO
Um silêncio assalto
A morte nos avizinha. A ausência nos torna família e aproxima mesmo aqueles que sempre estiveram distantes.
Mia Couto
Assim aprece, pelo menos. Mas nem sempre sucede. Por vezes, a morte afasta.Os que eram amigos não comparecem. Os que eram familiares se convertem em estranhos.
Em lugar de solidariedade,os parentes encontram na morte de alguém motivo para tomarem posse, reivindicarem direitos e reclamarem heranças.
Já Fabrício Sabat com o seu livro Viúvas da minha terra nos tinha alertado para quanto é grave e generalizado esse assalto a que são sujeitas as mulheres que acabaram de perder os seus maridos. Ainda a ferida está fresca e eis que cunhados, primos e tios se unem numa investida sem quartel. A ideia mestra é que os bens do falecido devem ser levados de volta para a sua família de origem. Esse assalto não respeita nem mulher, nem os filhos do casal.
A mulher que enviuvou está numa condição menor, renegada e excluída. Pode mesmo ser alcunhada de feitiçaria e acusada da morte do marido. Um longo percurso ainda nos falta para garantir direitos e segurança às viúvas da nossa terra. Os direitos que elas conquistam enquanto seres soberanos são, afinal, os mesmos que as irão defender contra esse assalto que ocorre quando, fragilizadas por terem perdido companheiro, são sujeitas a perderem tudo.
Eu acreditava ingenuamente que esta criminosa tendência atingia apenas alguns segmentos da nossa sociedade.
Nunca acreditei que minha vizinha Alzira (este é obviamente um nome falso, apenas para efeito desta crónica) fosse alvo de uma campanha de rapina. O falecido marido era economista, gente reputada e bem colocada. Ela mesmo, Alzira, com formação universitária reincidia nas tradições urbana de seus pais. Nada parecia levar a crer que as "hienas\" lhe caíssem em cima e disputassem aquilo que ela e seu marido tinham erguido com o esforço de uma vida.
Mas aconteceu. E eu, por distracção, não me dei conta. Em ela se queixou. Soube-o por portas e travessas. Visitei-a e ela, com dignidade, não apresentou queixa, nem reclamação. Mas eu achei por bem escrever esta palavra solidária. Para desocultar um crime que se disfarça de "tradição". Mas que nos faz sangrar a todos nós e a todos nos rouba um pouco da nossa humanidade.
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